UM "GRANDE VAZIO"

Eurípedes Barsanulfo Pereira

Até a chegada e a fixação de José Antônio Pereira na confluência dos córregos, posteriormente denominados "Prosa" e "Segredo", esta área, da extensa região do então chamado "Campo Grande", servia apenas como passagem para aqueles que procuravam chegar a Camapuã, e depois continuarem a jornada, em busca do ouro, em Cuiabá; para os que se deslocavam do Sertão dos Garcias (atual Município de Paranaíba) rumo à Vacaria; ou para os que, à época da Guerra do Paraguai, tangidos pelas investidas dos invasores de nosso território, foram se resguardar nas fazendas situadas a leste do rio Sucuriú. Completamente desabitada, fazia parte de um "grande vazio", ao sul da Província de Mato Grosso, como a denomina Acyr Vaz Guimarães (1).

A não ser os campos da Vacaria, mais ao sul, que já estavam sendo ocupados por diversas fazendas, esta parte não havia atraído, na verdade, a atenção daqueles que procuravam os sertões, para se apossarem de terras devolutas.

O mais eloqüente relato sobre as imediações de onde surgiria a cidade de Campo Grande é de autoria de Alfredo d'Escragnolle-Taunay, o Visconde de Taunay, em "Céus e Terras do Brasil":

"Uma légua mais, entramos no Campo Grande. Esta extensa campina constitui vastíssimo chapadão de mais de cinqüenta léguas de extensão, em que raras árvores rompem a monotonia duma planura sem fim (...)." (2)

Quando por aqui chegou, ao anoitecer do dia 21 de junho de 1867, Taunay foi descansar junto ao "capão do Buriti," onde em 1865 havia se arranchado uma família brasileira, para "fazer mate" e que na ocasião foi presa por soldados paraguaios. Nem mesmo, quando descreve sua passagem pela "lagoa do Paula" ou pelo ribeirão das "Botas," acusa o encontro de alguma alma vivente ou de qualquer palhoça. Era de seu costume seguir caminhos, ao longo dos quais pudesse encontrar os melhores pontos para as paradas, especialmente pernoites, como se pode constatar nos relatos de suas viagens. Percebe-se, claramente, que tudo o que era digno de ser anotado, o fazia, descendo aos detalhes, quer de aspectos físicos dos locais, quer das pessoas que por acaso encontrasse, chegando muitas vezes ao requinte de retratá-los em desenhos. É de se estranhar, portanto, que se tivesse encontrado moradores nesta região do Campo Grande, apenas estes, não merecessem citação no seu diário de viagem.

Rosário Congro, em publicação, de 1919, intitulada: "O Município de Campo Grande - Estado de Matto Grosso", inicia deste modo o "Histórico" sobre a fundação:

"Em 1872, a quasi dezerta região meridional da então Provincia de Matto Grosso, comprehendia, apenas, na vastidão dos seus trezentos mil kilometros quadrados, approximadamente, as villas de Miranda, outr'ora presídio do mesmo nome, fundado em 1797, e Sant'Anna do Paranayba, alem das povoações de Nioac e Coxim." (3)

Mais adiante, quando se refere à destruição da roça de José Antônio Pereira por uma nuvem de gafanhotos, e suas dificuldades para conseguir alimentos, faz alusão ao morador mais próximo do local, nos seguintes termos:

"Distava doze legoas o morador mais próximo, proprietário de uma fazenda que a invasão inimiga fizera abandonar por alguns annos, tornando-a tapera, o gado perdido, internado nas selvas, volvido feróz.

Era alli que ia supprir-se Pereira da sua principal alimentação, que era a carne dos vaccuns bravios comprados a 15$000 e abatidos a tiros, em verdadeiras caçadas." (4)

Na altura em que comenta sobre a chegada de outros, que vieram somar-se a José Antônio Pereira, escreve:

"No ano seguinte, José Antônio Pereira regressou a Monte Alegre, deixando o seu rancho e a sua lavoura incipiente entregues a João Nepomuceno, com quem se associara.

Nepomuceno era caboclo de Camapuã, um arraial que morria, situado na antiga Fazenda Imperial do mesmo nome, nas cabeceiras do Coxim, e que ali aparecera, "de muda" para Miranda, quebrando a monotonia do ermo com dois carros de bois que o peso da carga fazia chiar nos eixos." (4)

E ainda:

"A enorme extensão das terras não occupadas, a sua optima qualidade para cultura e creação e, sobretudo, o clima amenissimo, elementos seguros de prosperidade, fizeram a attracção de innumeras pessoas, vindas não só de Minas, como de S. Paulo, Rio Grande do Sul e outras províncias." (6)

Historiando o retorno do Fundador, usa as seguintes palavras:

"Só em 1875 voltou José Antônio, trazendo sua família (...) Em busca, não mais do desconhecido, mas de uma região habitada apenas por tribos selvagens e animais ferozes..." (5)

Paulo Coelho Machado, em "A Rua Velha", descreve assim, o primeiro contato de José Antônio com a terra que escolhera para se fixar:

"Na fria madrugada do dia seguinte ao da chegada, José Antônio verificou, com olhos experientes, que havia chegado a seu destino. Não era preciso caminhar mais. Não só aprazível era o lugar, como possuía vegetação luxuriante, indicadora da fertilidade da terra. Um pequeno passeio pelos arredores confirmou o acerto do local escolhido. Terra argilosa, vermelha e roxa, com abundante cobertura, ideal para a lavoura, campinas sem fim, eriçadas de capões, para a criação de milhares de reses. Água abundante. Estava definitivamente escolhido o local." (7)

"Nesse mesmo dia (...) José Antônio chamou os companheiros e comunicou-lhes a resolução. Iniciaram então a faina para a construção do primeiro rancho, localizado na forquilha das águas, justamente na parte mais baixa da região." (8)

Acyr Vaz Guimarães, em "Mato Grosso do Sul, Sua Evolução Histórica", escrevendo sobre a ocupação do território sul-mato-grossense no decorrer do século XVIII, assim se expressa:

"Tudo era sertão, apenas índios por todas as partes, desde o extremo sul, onde estavam os caiuás, até as divisas com as terras de Goiás, onde estavam os caiapós. Os guaicurus varavam todo o pantanal (...) Os paiaguás não saíam em terra, mas corriam todo o rio Paraguai (...)

Nem mesmo a abundância de gado nativo e campo farto para a criação em clima bom, terras boas, de rios navegáveis, fazia alguém aportar ao grande território, onde só índios viviam." (9)

Na mesma obra, agora descrevendo fatos ocorridos em meados do século XIX, décadas de 50 e 60, relativos ainda à ocupação do sul da Província de Mato Grosso:

"Com soldados em maior número, que passavam a policiar a região, por caminhos que se abriam, os fazendeiros foram encontrando melhores maneiras para se comunicarem, atraindo, para o baixio e para a Vacaria, outros de outras províncias. Grandes áreas, todavia, continuavam despovoadas (...) o leste, em grande parte, até o rio Paraná (...) o conhecido Campo-Grande da Vacaria, de extensas campinas - larga área, portanto, sem caminhos e sem povoadores." (10)

Fica evidente, a par dos escritos destes eminentes historiadores, que estes sítios da então Província de Mato Grosso, ao tempo da chegada de José Antônio Pereira, era solo de ninguém, área devoluta e sem habitantes. Constituída de excelentes terras para o cultivo e vastas campinas para a criação, guardou as suas potencialidades para serem feridas, à hora aprazada, pelas mãos daquele mineiro idealista, e transformadas em leiras fecundas, que acabaram brindando seus primeiros cultivadores, com produções de ótima qualidade.


1. GUIMARÃES, Acyr Vaz. Mato Grosso do Sul, Sua Evolução Histórica. Mapa N°2, p. 63, Editora UCDB, Campo Grande-MS, 1999.

2. TAUNAY, Visconde de. Viagem de regresso de Mato Grosso à Corte. In: Céus e Terras do Brasil, p. 85. Edições Melhoramentos, 9ª edição, 1948.

3. CONGRO, Rosário. O Município de Campo Grande - Estado de Matto Grosso. Publicação Official ( p. 07), 1919.

4. Idem., Ibidem., p. 09-10.

5. Idem., Ibidem., p. 10-11.

6. Idem., Ibidem., p. 16.

7. MACHADO, Paulo Coelho. Pelas Ruas de Campo Grande Vol. I: A Rua Velha, p. 14. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, Agosto de 1990.

8. Idem., Ibidem., p. 15.

9. GUIMARÃES, Acyr Vaz. Mato Grosso do Sul, Sua Evolução Histórica, p. 35. Editora UCDB, Campo Grande-MS, 1999.

10. Idem., Ibidem., p.113.

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