O "Registro" de Campo Grande

 

Hildebrando Campestrini
Presidente do Instituto Histórico
e Geográfico de Mato Grosso do Sul

 

Em 1892 (9 de novembro), o Presidente da Província de Mato Grosso baixou a Lei n. 20, determinando o reexame de todos os títulos de posse. Os proprietários deviam apresentar prova de morada habitual e de exploração da terra. Depois era nomeado um perito para medir a área. Se houvesse excesso, o proprietário deveria pagar à Província a diferença. Só após esta regularização era feito o registro do título de posse, na intendência local, “conforme o Regulamento n. 38 de 15 de Fevereiro de 1893” .

Adiante está transcrito, literalmente, o registro da área do Arraial de Santo Antônio de Campo Grande, sob o número 427, no livro n. 14, do município de Nioaque.


 

N. 427

 

João Luiz da Fonseca e Moraes, intendente geral do Município de Nioac.

Faço saber aos que o presente titulo verem ou delle tiverem conhecimento que nesta data de conformidade com os artigos 116 a 125 do Regim. 38, approvei por se acharem em devida forma os documentos que me forão apresentados para registro, de Jose Antonio Pereira, administrador da Igreja do Patrimônio de Santo Antonio de Campo-Grande possue uma área de campos e mattos no lugar denominado “Campo Grande” neste município, na extensão de três mil e seiscentos hectares. Limitando-se: ao Nascente: as cabeceiras do córrego da Proza, comprehendidas todas as vertentes affluentes do mesmo córrego; ao Poente, com as posses de D. Francisca Taveira e José Alves Rabello, pelo espigão mestre; ao Norte, do córrego do Segredo e todos os seus affluentes linha recta  a cabeceira da Proza; ao Sul, com os limites de Joaquim Antonio Pereira recta atravessando Nhanduhy e o córrego Lagoa. Cujas posses funda-se no artigo 5º § 5 da Lei n. 20 de 9 de Novembro de 1892, e determino que se expeça ao requerente o presente titulo que lhe permita legitimação. Intendência Municipal de Nioac 20 de junho de 1894. Eu José Nelson de Santiago, escrevente que o escrevi (assignado). Intendente Geral João Luiz da Fonseca e Moraes.

(Excerto do artigo O registro de Campo Grande,  Jornal “O Correio do Estado”, Caderno B, Suplemento Cultural, página 3, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 28 de agosto de 2004)



Memorial descritivo dos trabalhos da medição e demarcação das terras destinadas ao Rocio da Vila de Campo Grande
(30 de março de 1910)

Themístocles Paes de Souza Brasil
Engenheiro Militar

Transcrição do manuscrito original:
Prof. Arnaldo Rodrigues Menecozi

Designado pelas autoridades militares para dar início e andamento às obras necessárias à instalação em Campo Grande da 5ª Brigada Estratégica, a esta vila cheguei em maio do ano próximo findo para dar desempenho às ordens recebidas, pondo logo de chegada os meus serviços profissionais de engenheiro à disposição da municipalidade, independentemente de remuneração, com o intuito de concorrer para o desenvolvimento local de tão futuroso povoado.

Era então Intendente Municipal o esforçado Sr. José Santiago, que me proporcionou a satisfação de prestar os meus serviços, propondo-me ao Governo para proceder à demarcação da área de terras necessária e destinada ao Rocio.

Foi assim que devidamente autorizado pelo Exmo. Sr. Coronel Presidente do estado, depois de publicados os editais conforme prescrevem as leis e atentam os documentos que a este acompanham, dei início aos trabalhos cuja marcha e detalhes indicados na caderneta e planta vão abaixo descritos.

Técnica

Foram empregados nos trabalhos os métodos: de caminhamento, para o traçado do perímetro e o de radiamento para a sua ligação à planta do povoado. Uma grande parte do levantamento dos detalhes, como sejam: caminhos, habitações isoladas, etc., foi feito por caminhamento expedito a pedômetro e bússola, que fornecem precisão mais que suficiente para os fins a que se destinam.

Além do pedômetro e bússola, foram utilizados os seguintes instrumentos: teodolito de montanha Gurley’s dando o minuto, uma estadia para a verificação das distancias e nivelamento trigonométrico, cadeia métrica e trena, todos para os trabalhos topográficos; sextante Hurlinan com tripode, cronômetro Whrite de campanha tempo médio, aneróide e cronômetro máxima e mínima; todos para a determinação das coordenadas astronômicas, teodolito astronômico de campanha do fabricante Heyde para determinação da declinação magnética, cujo valor obtido foi de δ= 1º31’14” O.

Na medida dos ângulos foi feita a repetição para reduzir os erros sistemáticos e fortuitos.

Com o fim de dar maior precisão, as distâncias foram todas medidas segundo as inclinações do terreno sendo estas registradas com a aproximação de minuto permitindo a redução ao horizonte.

A latitude foi obtida pela redução ao meridiano de alturas do sol.

A falta de outros meios chegou a determinar a longitude pelo caminhamento que fiz Aquidauana – Campo Grande, obtendo-a por diferença da daquela vila que tem a sua longitude exata determinada pelo telégrafo.

A declinação magnética determinou-se observando a maior elongação do β Centauro.

A altitude foi obtida pelo barômetro com boa média de observações e calculada pelo método gráfico de Weileumann.

Foram empregados processos analíticos, quer no cálculo da área, quer na obtenção de elementos lineares. A distribuição do erro de fechamento foi feita pelo método dito de distribuição paralela a mais comumente empregada.

Marcha dos trabalhos – Não tendo sido encontrado registro nem título das terras destinadas à vila de Campo Grande, resolvi em vista de se tratar de terras para servidão pública, procedeu aos trabalhos conforme as indicações dos limites que me foram feitas pela municipalidade, limites estes que estão no conhecimento de todos os moradores da vila, principalmente os mais antigos.

Tendo pelo Exmo. Sr. Presidente do Estado me sido determinado em telegrama que destes autos faço acompanhar, que a área a demarcar deveria ser de três mil e seiscentos hectares, tornou-se necessária proceder à medição de um polígono de ensaio, para uma vez analisada a sua área tirar ou adicionar a que fosse necessária para completar as 3.600 hectares.

Na escolha deste polígono de ensaio obedeci aos critérios seguintes:

1º Ter como lados obrigados os limites das fazendas do Estribo e do Bandeira, que por distarem pouco da vila deviam constituir limites do Rocio a fim de evitar que ficasse uma faixa estreita de terras devolutas e inaproveitadas, entre eles;

2º Circunscrever o mais estritamente possível as cabeceiras que afluem para os dois pequenos córregos que regam o povoado, o Prosa e o Segredo, a fim de que ele não fique privado da água necessária à sua manutenção e higiene.

3º Dar a forma a mais regular possível.

Atentando a estas três condições foi o polígono traçado.

Sendo os limites das fazendas do Bandeira e do Estribo linhas obrigadas, por elas convinham ser iniciados os trabalhos e por isto foram os editais publicados designando o marco o mais oriental dos limites da primeira destas fazendas para início dos trabalhos.

Foi verificado, porém não existir este marco e nenhum dos outros desses limites, tornando-se, portanto necessária uma aumentação de rumos.

Nestas condições e não dispondo de meios para assinalar as posições dos marcos mencionados resolvi iniciar o trabalho em um ponto de terras devolutas e por elas prosseguir até que me chegasse às mãos cópia dos autos e planta das medições das referidas fazendas, pedidos para Cuiabá.

Assim a 16 de novembro em presença dos senhores José Santiago, Intendente municipal; Antônio Paes de Barros, secretário da Câmara; Amando de Oliveira, posseiro da fazenda do Bandeira; e várias outras pessoas; foi colocada a estaca inicial, na face a mais ocidental do polígono, prosseguindo os trabalhos com rumo sensivelmente Norte que depois foi modificado para satisfazer a segunda das condições impostas.

Para satisfazer a 3ª das condições foi necessário calcular os elementos do polígono, com as denominações 65-75; 75-93; 98-111 e traçá-los no terreno.

Ao chegar à estaca 90, em frente à cabeceira do Desbarrancado, a mais oriental de todas, foi traçado um alinhamento ligando-a ao marco mais próximo da fazenda do Estribo e dali prosseguindo-se pela sua linha divisória em direção a SO (sudoeste), até o marco comum aos limites da fazenda do Bandeira, marco este que não foi encontrado e cuja posição foi determinada pelos marcos do alinhamento existentes nas linhas neles concorrentes.

Passam-se então a aumentação dos limites da fazenda do Bandeira, para o que em ofício feito convite aos posseiros para se fazerem devidamente representar a fim de assistirem à execução do trabalho.

Seguindo-se o que está especificado no memorial descritivo dos autos da respectiva medição, foi feita a aumentação das linhas, não tendo havido protesto por parte dos interessados que acompanharam os trabalhos.

Chegando de novo à estaca inicial foi o polígono calculado, tendo sido encontrada área de seis mil, quinhentos e quatro hectares, trinta e quatro ares e setenta e nove metros quadrados, área esta que excede de cerca de dois mil novecentos e quatro hectares a de três mil e seiscentos determinada.

Da inspeção da planta vê-se que para tirar do polígono traçado este excesso de área ter-se-ia necessariamente que cortar várias das cabeceiras tributárias dos córregos e isto viria trazer grande prejuízo ao desenvolvimento local, pois que não só as terras boas para cultura se acham à margem das águas, sendo as restantes bastante impróprias, como também pela impossibilidade de, de modo conveniente, a municipalidade legislar sobre as águas e assim criar grandes e talvez insuperáveis dificuldades no futuro abastecimento, que devido à parcimônia com quem a natureza aí distribuiu as águas, desde já se faz mister.

Atendendo a todas estas condições comuniquei ao Sr. Intendente estes resultados dos estudos que fiz e a ele lembrei a necessidade de solicitar do Exmo. Senhor Presidente que fosse concedida toda a área encontrada, o que quer dizer, o domínio de todas as águas.

A solicitação foi atendida, me havendo sido comunicado em ofício da municipalidade, que a estes autos faço juntar.

No estudo que fazermos bem se pode verificar a necessidade da medida que o Exmo. Senhor Presidente houve por bem conceder à municipalidade.

A caderneta e a tabela do cálculo juntas esclarecem sobre os detalhes dos trabalhos.

Área

Conforme a determinação do governo do Estado e execução dos trabalhos ficará o Rocio da vila de Campo Grande com a área de seis mil quinhentos e quatro hectares, trinta e quatro ares e setenta e nove metros quadrados. (6.504 Hc. 34 ar. 79 m2).

Limites característicos do Rocio

Ao Norte: terras devolutas, separadas por uma reta dirigida de Oeste para Leste, com o rumo magnético de N 89º13’27” E, da extensão de 2.499,49 m, através de terreno coberto de cerrado espesso, determinada por dois marcos de aroeira colocados nos seus extremos. A 700 metros esta reta atravessou uma pequenina cabeceira;

A Leste: terras devolutas das quais é separado por uma linha quebrada com os seguintes elementos: uma reta de 2.863,28 m de extensão com o rumo magnético de S 23º34’8” E; seguindo-se outra de 4.989,75 m, com o rumo de S 26º45’11” E, com a extensão de 1.640,58 m, indo terminar no marco o mais ao norte do limite NO (Noroeste) da fazenda do Estribo.

Esta linha quebrada foi aberta através espesso cerrado.

Ao Sul: limita com a fazenda do Estribo da qual é separado por uma linha de 4.359, 17 m com o rumo de S 54º48’13” O, aberta em cerrado grosso; com a fazenda do Bandeira, por uma linha quebrada composta dos seguintes elementos: uma reta partindo do marco comum à fazenda do Estribo, com o rumo N 50º1’27” O e a extensão de 1.085 m, seguindo-se outra com o rumo S 75º28’22” O da extensão de 2.500 m, finalmente uma terceira da extensão de 2.322, 28 m com o rumo N 28º5’49” O que atravessou o rio Anhanduí na distância de 1.433,41 m.

A Oeste: limita com terras devolutas e invernada militar das quais está separada por uma linha quebrada com os elementos: uma reta com o rumo N 4º14’ E de extensão de 2.148,21 m seguindo-se outra com o rumo N 17º14’49” E com a extensão de 8.032,04 m ambas traçadas em campo.

Demarcação

Todos os pontos importantes do perímetro foram assinalados com marcos de aroeira falquejados terminados superiormente por pirâmides e marcados a fogo com as iniciais CM da Câmara Municipal. Igualmente foram colocados marcos de alinhamento.

Feição do terreno e formação geológica

O terreno demarcado apresenta belíssimo aspecto, aliás, não raro no vasto planalto da serra de Maracaju, que se estende de Sul a Norte, com suave inclinação para Leste formando a parte ocidental da bacia do rio Paraná.

Das admiráveis planuras elevadas que cercam a pequena bacia, se avista em depressão o fundo ligeiramente ondulado dos pequenos vales por onde correm os dois pequeninos córregos serpenteando-se ora no interior de densa mata, já em grande parte destruída pelo impiedoso machado, ora em clareiras e cortando quintais de habitação do povoado.

Com direções convergentes vão estes córregos próximo se encontrar determinando a pequena forquilha onde demoram a maior parte dos fogos da futurosa Campo Grande.

Como em todo o planalto da serra de Maracaju encontra-se aí simplicidade na estrutura geológica.

A rocha predominante é o grês ferruginoso que forma vasto alicerce de grande espessura constituindo – subsolo, que se estende para Oeste indo terminar em corte abrupto a não grande distância, onde começa a imensa depressão que constitui a bacia do rio Paraguai.

Por sobre este grande estrato gresoso acha-se uma camada de espessura variável de argila vermelha protegida, ora por camada húmus nos lugares onde as circunstâncias mesológicas foram favoráveis, determinando exuberância na vegetação formando magníficas matas, ora por verdadeiros bancos de areia onde a vegetação se aniquila, formando o cerrado característico do planalto central do Brasil.

É de notar que estes bancos se encontram sempre nos lugares elevados onde a forma do terreno não favorece o desmonte pelos meios meteóricos.

Em um ou outro lugar e nos pequenos vales de erosão vêem-se aflorações de pequeninos filito de xisto argiloso.

As ocorrências destas rochas, apesar de não virem acompanhadas do calcário, dão indício da formação geológica Devoniana, terceiro período da era primária.[1]

Todas as pesquisas a que procedi no sentido de descobrir algum fóssil que pudesse vir melhor orientar o estudo deram resultado negativo parecendo-se poder concluir a natureza afossilífera local.

Deste esboço geológico se verifica quão escassos são os materiais de construção de origem mineral de que se pode dispor no local.

Além do grês, que se apresenta com modalidades nas suas propriedades físicas, principalmente na dureza, oferecendo como pedra de construção qualidades desejável, da areia e da argila de nenhum outro material se poderá dispor.

O calcário falta em absoluto.

Esta pobreza mineral local, aliada à falta de meios de transporte, tem trazido como conseqüência o retardamento do desenvolvimento da vila de Campo Grande, que outros e grandes elementos de prosperidade podem oferecer.

Hidrografia

É precisamente na vila de Campo grande que se dá a confluência dos dois pequenos córregos que receberam as denominações pitorescas de Prosa e Segredo, ao que se dizem originárias da luta que se travou em tempos passados entre moradores das margens de um e de outro.

Estes dois córregos fornecem em concorrência as primeiras águas do Anhanduí, principal afluente do rio Pardo, tributário do Paraná.

O Prosa, que traz as suas águas das pequenas elevações de Leste, dirige-se precisamente para Oeste com um percurso de 7.800 metros, quase em linha reta, despenhando-se aqui e ali em degraus de rocha gresosa, formando pequeninos saltos dos quais o mais importante tem 5 metros de alto, vencendo deste modo a diferença de nível de 112 metros que medeia entre a sua origem e foz.

O leito de puramente arenoso nas origens se transforma, apresentando-se em um e outro lugar ora lajeado pelo grês, ora argiloso.

A sua verdadeira cabeceira ou cabeceira mestra é conhecida é conhecida pelo nome de Desbarrancado, pelo aspecto que apresenta o seu leito devido ao desmonte produzido pelas águas. Recebe pela margem direita três pequenos afluentes, sendo que o mais baixo oferece maior importância determinando pela sua confluência a forquilha conhecida como pontal do Prosa, encerrando excelentes terras em grande parte cultivadas.

O Segredo nasce nas elevações do Norte, dirige-se a SSO (Sul Sudoeste) com traçado sensivelmente retilíneo, atingindo o desenvolvimento de 10.000 metros em um desnível de 113 m.

Recebe pela margem direita duas pequenas cabeceiras, uma menor que tem origem na lagoa da Cruz, a outra um pouco maior denominada Olhos d’Água, também oriunda de uma pequenina lagoa.

Pela margem esquerda apenas uma cabeceira contribui com as suas águas, é a denominada Cabeceira do Jacinto.

Tanto o Prosa como o Segredo tem os seus leques cobertos de exuberante mata já em grande parte grosseiramente destruída, o que vem sobremodo influir na diminuição das águas.

Determinados os volumes d’água de ambos durante a seca do começo de 1909, foram encontrados seguintes números: Prosa: velocidade média, 0,2744 m, área da seção com 1,2256 m2 e a descarga por minuto 336 litros; Segredo: velocidade média, 0,4536 m, área da seção com 0,6290 m2 e a descarga por minuto 285 litros. Descarga total dos dois córregos: 621 litros por segundo, valor este que reduzido ao dia orça em 53.654.400 litros.

Se adaptar-se o número 310 litros, que é o número adotado em Nova Iorque, por habitante/dia, teremos que os dois córregos poderão abastecer uma população de cerca de 170.000 habitantes.

Deve-se notar que a descarga dos córregos conquanto elevada seja, entretanto atualmente pouco aproveitada devido às lavagens e despejos que neles fazem os moradores das suas margens, apesar das medidas adotadas pela municipalidade.

Um rego derivado do Prosa, à montante do primeiro salto, conduz a água que é consumida por quase todos os habitantes da vila.

Este meio de distribuir a água além do grande inconveniente para a higiene da alimentação oferece ainda a desvantagem de inutilizar o solo espalhando água pelas ruas que com o trânsito ficam cortadas por verdadeiros atoleiros.

É de lastimar o regime adotado pelos habitantes ribeirinhos desta localidade na utilização das águas.

Em geral cada um tira em seu terreno um rego de derivação do córrego, conduzindo as águas primeiramente para o clássico monjolo, seguindo-se ao chiqueiro de porcos e em seguida dirigindo-se de novo ao córrego.

Compreendem-se facilmente os danos que podem causar este regime, que existe ainda a despeito dos meios coibitivos estabelecidos pela legislação, quer municipal, quer estadual.

Enquanto é pequena a população e as rendas municipais não comportam as despesas de um melhor serviço de abastecimento, a distribuição de água por chafarizes convenientemente distribuídos se impõe.

Ao governo do Estado cabe o fornecer os recursos necessários para este melhoramento vital, desde que os cofres municipais não possam, como se dá, suportar as despesas decorrentes.

Trata-se de proteger uma população crescente de males, que atualmente pequenos se irão avultando à medida que ela aumentar.

Afora as águas dos córregos, não pode a população na estação da seca contar com nenhuma outra.

O recurso pouco recomendável das cisternas em Campo Grande, não oferece segurança devido à natureza do subsolo.

Abertas as cisternas depois de muitas dificuldades, para vencer a rocha gresosa, muitas vezes com grandes profundidades, não fornecem veios d’água perenes e conservam-se apenas úmidos pelas infiltrações.

É só por ocasião da estação das chuvas, que nele se acumulam grandes volumes de águas pluviais que ficam em depósito até o seu completo consumo.

São assim águas paradas sob a ação de resíduos orgânicos arrastados que, depois de certo tempo, nenhuma garantia oferece à higiene.

Além disto, o volume limitado que oferecem estas águas, obriga à economia e dali a abstinência de certos preceitos necessários à saúde.

O regime das águas pluviais é em Campo Grande interessante pela impetuosidade que apresentam as torrentes, e pelo trabalho que produzem arrastando as terras, cavando uns lugares, aterrando outros, enfim transformando a feição exterior do solo com grande rapidez.

Acerca de 600 m a Oeste das primeiras cabeceiras do Segredo tem origem um pequenino córrego denominado Ceroula, que despeja suas águas para a bacia do rio Aquidauana, tributário importante do [rio] Paraguai.

A estreita faixa de terra que medeia entre as duas cabeceiras constitui nesse ponto o divisor d'águas das duas enormes bacias dos grandes caudais que formam o rio da Prata.

Ela apresenta aí planuras cobertas de cerrado e leva direção SO-NE.

É de notar o grande contraste que se observa entre as duas bacias adjacentes.

Enquanto que uma, a do Paraná, apresenta lindos campos descobertos matizando o solo de uma belíssima serenidade topográfica, sulcado caprichosamente pela vegetação marginal, elevada dos veios d'água; a outra, a do rio Paraguai, ostenta uma vegetação compacta de cerrado, cobrindo por completo terreno um tanto acidentado, elevando aqui e além pequenos morros como que para romper a monotonia da paisagem.

A bacia do Paraná inclina as suas terras suavemente para Leste, ao mesmo tempo em que a do Paraguai assenta o seu leito no fundo de enorme depressão cercada por gigantesca muralha de grês, já esboroada em muitos lugares, permitindo a formação de rampas que facilitam o acesso ao planalto.

Clima

Goza a vila de Campo Grande da amenidade de um clima temperado peculiar às altas latitudes da zona tórrida, em altitudes médias e longe das influências dos mares.

Assim é que o termômetro não acusa grandes subidas no verão e nem maiores descidas no inverno, mudando a temperatura gradualmente sem quedas abruptas.

Em 1909 a mínima temperatura observada foi de 4º Centígrados[2] e deu-se no mês de maio e a máxima foi de 29ºC, tendo tido lugar no mês de dezembro.

A pressão barométrica oscila pouco em torno de 702 mm.

Observa-se aí o mesmo fato que nas baixas latitudes, o ano é dividido em duas estações bem acentuadas: da seca e a das chuvas, o que permite uma previsão mais ou menos segura das condições materiais e concorre sobremodo para a regularização da vida e do trabalho.

Como vento dominante sopra diariamente uma brisa de Leste que, nas horas de maior calor vem amenizar a temperatura ambiente e trazer o ar purificado através [de] vasto trajeto pelos campos do Oriente.

Estas condições climáticas permitem desde logo se afirmar a salubridade, entretanto para o seu verdadeiro conhecimento seria necessário que a população se impusesse às prescrições higiênicas que são aí muito descuradas.

Ainda assim, com o descaso pela higiene, a despeito de tudo é a salubridade invejável, diminuta é a porcentagem dos óbitos por moléstia.

Povoado

Pelos 20º27'15,6” de latitude Sul, 11º36'55,5” de longitude Oeste do meridiano do Rio de Janeiro, e uma altitude de 735 m, na forquilha formada pelos córregos Prosa e Segredo, em terreno ligeiramente inclinado, apresentando um aspecto agradável ao viajante que chega aos planos elevados de Oeste, pela estrada do porto 15 de Novembro do rio Paraná, assenta a vila de Campo Grande.

Pequena ainda, lentamente se formando lutando com dificuldades decorrentes da falta de materiais de construção, mostra, entretanto ser um núcleo de progresso que rapidamente aumentará quando as vias de comunicação em execução facilitar os produtos de que necessita.

Pela sua situação geográfica, no centro da vastíssima região a mais propícia para a indústria pastoril, está destinada a ser o maior empório do sul do Mato Grosso, onde se fará a permuta de todos os produtos necessários à vida.

Ponto estratégico importante dominando com possível equidistância toda a parte mais importante da fronteira sul, além de oferecer todos os elementos necessários à manutenção das forças e salubridade para o gado equino, será necessariamente o ponto de onde irradiarão os ramais de estrada de ferro que chegando normalmente às fronteiras, venham à feição das sabidas táticas, permitem que as tropas estejam dentro de reduzido tempo estabelecido os seus primeiros contatos com as forças adversárias, obstando-lhes o passo invasor.

Como não bastasse a condição estratégica de Campo Grande para determinar o traçado ferroviário para a fronteira, ainda o terreno está como que a pedir a sua construção, oferecendo o leito quase preparado pela natureza no divisor de águas Paraná – Paraguai, que em planuras admiráveis descreve com a direção SO (sudoeste) e um desenvolvimento de cerca de 250 quilômetros em gracioso arco de círculo.

Nesse trajeto os grandes movimentos de terras e obras de arte, que mais encarecem o custo quilométrico, faltam quase que por completo.

A indústria se acha apenas esboçada, sendo representada por pequenos engenhos de cana que produzem rapadura e aguardente, por uma serraria, e algumas olarias que produzem tijolos e telhas.

A agricultura está também em atraso, cultiva-se o milho, o arroz, a cana-de-açúcar, o café, capim jaraguá para forragem, tendo em pequena escala, e a mandioca que apesar da fertilidade com que se produz, não é cultivada nem mesmo o suficiente para o consumo, sendo a farinha importada do Rio Grande do Sul.

Esboça-se atualmente uma pequena cultura de maniçoba que parece promissora.

Fica assim terminada com a indicação dos trabalhos da medição, esta ligeira notícia sobre o mais futuroso dos modernos povoados do rico estado de Mato Grosso.

Campo Grande, 30 de março de 1910.
Themístocles Paes de Souza Brasil
Engenheiro Militar


[1] Esta classificação deve ser considerada provisória até que com o aparecimento de fósseis a paleontologia venha dar a sua confirmação.

[2] Deve-se notar, porém, que nesse ano houve anormalidades nas estações e que a mínima de 4ºC é deficiente. No inverno as geadas não acostumam ser raras conquanto fracas.


 

 

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