Roca
Museu José Antônio Pereira



O TEAR DA VOVÓ ANNA LUIZA

Euripedes Barsanulfo Pereira

Retornemos no espaço e no tempo, e transportemo-nos ao casarão da Fazenda Bálsamo, na segunda década que se segue à fundação do Arraial de Santo Antônio do Campo Grande.

Último decênio do século dezenove. Após a colheita do algodão, a cada mês de maio, as moças continuavam na lida, em torno da vovó Anna Luiza.

Para quem gerara uma dezena de filhos, sete mulheres representavam uma considerável força de trabalho, que se multiplicava nas fainas da fazenda. Dentre tantas, essas reuniões davam ensejo ao aprendizado das prendas domésticas, que as fariam casadouras.

Seguindo-se à grosseira limpeza manual, com a retirada dos corpos estranhos e dos chumaços de seus capulhos, as sementes de algodão eram extraídas às maniveladas do descaroçador. O batedor permitia a separação das impurezas menores, dando lugar, então, ao desembaraçamento das fibras. Esses mutirões familiares, para o processo do cardamento, resultavam freqüentemente em verdadeiras tertúlias.

Fiando com a roca


Enquanto as mãos das netas de José Antônio Pereira ocupavam-se nas cardas ou nos fusos, vovó Anna Luiza pedalava compassadamente a roca, aprontando os fios a serem trabalhados em seu tear pente-liço clássico, que trouxera da longínqua Prata, nas Minas Gerais. Antes de tudo, era necessário o enrolamento em meadas, nos sarilhos, para serem branqueados ou corados e transformados finalmente em novelos, através da dobadeira, ultimando desse modo a fiação.

Quando nos aproximamos do velho e abandonado tear, agora peça de museu histórico, imagens desse passado distante parecem chegar-nos à mente, em tons vívidos, reforçando de modo inusitado os relatos de familiares mais idosos, sobre esses tempos.

As vestimentas da família e outras peças de tecido, como toalhas, lençóis, tapetes e panos de cozinha, todos confeccionados artesanalmente pelas mãos laboriosas daquela incansável matrona, que se ocupava invariavelmente da fiação e da tecelagem.

Arte milenar e seu ritual tiveram um profundo significado para aquela mulher, como metáfora da tessitura da própria vida. Talvez o efeito "tear-pêutico" dessa atividade singela tenha contribuído para amalgamar tantas virtudes à sua boa alma, realçando-lhe a serenidade e a doçura.

O debuxo concebido, com suas picas e deixas, materializando-se ponto-a-ponto pelo cruzamento ortogonal da trama, num vai-e-vem contínuo, por entre os fios da urdidura. Sincronia perfeita entre os liçaróis, o sobe-e-desce dos liços, para a formação das calas e passagem dos navetes e das lançadeiras, rematada pelo batimento do pente. Raramente o ajuste de algum fio com o pescador. As sarjas de algodão e, ocasionalmente, outros padrões iam surgindo, como os cetins e tafetás.

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A vida não seguiria também um debuxo? Seu fluxo não teria linhas predeterminadas, como regras imutáveis, leis; assemelhando-se aos fios da teia, da urdidura? O tecido da vida não se faria por ação voluntária? Não teceríamos as nossas próprias tramas, em livre arbítrio, através dos navetes de nosso caráter? Quiçá, devaneios semelhantes ocuparam a mente da esposa de Antônio Luiz Pereira, quando se recolhia solitária, e punha-se a tear.


GLOSSÁRIO:

Batedor: Instrumento de limpeza do algodão feito com um galho de árvore retesado em forma de arco.

Batimento: Processo de limpeza do algodão, feito com um galho de árvore retesado em forma de arco, denominado batetor.

Batimento do pente: Consiste na junção do fio de trama inserido, ao tecido já formado, através do pente.

Cala: Abertura entre os fios da urdidura por onde passam os fios da trama.

Capulho: Cápsula dentro da qual se forma o algodão.

Carda: Instrumento semelhante a uma escova, de forma quadrangular e dotado de um cabo para o seu manuseio. Sua superfície é coberta por dentes de madeira, muito próximos, que permitem o desembaraçamento das fibras do algodão ou da lã.

Cardamento: Processo final de desembaraçamento das fibras de algodão ou de lã, efetuado por um par de aparelhos denominados cardas.

Cetim: Tecido de seda, lustroso e macio. Um dos padrões de tecelagem.

Debuxo: Modo como se faz o entrelaçamento dos dois sistemas de fios no tear e que pode ser representado graficamente em papel quadriculado. Ponto.

Deixa: No esquema do debuxo, em papel quadriculado, corresponde a um quadrado vazio. Significa que a teia (urdidura) passa por baixo da trama.

Descaroçador: Aparelho movido à manivela, que movimenta dois cilindros de madeira, através dos quais se processa a retirada das sementes dos chumaços de algodão.

Descaroçamento: Processo de retirada das sementes de algodão dos seus chumaços, através do descaroçador.

Dobadeira: Aparelho que permite transformar as meadas em novelos. Compõe-se de quatro varas dispostas vertical e paralelamente em torno de um eixo, e em volta das quais se enrolam meadas, seguras duas a duas nas extremidades por meio de réguas dispostas em cruz. Dobadoura, dobadoira, meadeira.

Fiação: Processo de preparação do fio que consiste em puxar as fibras da massa e enrolá-las em seguida no fuso, ou através da roca, no carretel.

Fuso: Instrumento roliço sobre o qual se forma, ao fiar, a maçaroca, isto é, os fios de algodão ou de lã.

Lançadeira: Peça em forma de barco usada no tear e que contém um cilindro ou canela por onde passa o fio da tecelagem.

Liçarol: Conjunto formado pelo caixilho (barras de metal ou madeira) e pelas malhas (malhas de arame torcido, ou de aço, que possuem um anel central chamado olhal) por onde passam os fios da teia ou urdidura.

Liço: Cada um dos fios, entre dois liçaróis do tear, que sobem e descem para serem atravessados pelos fios da trama.

Meada: Porção de fios dobrados.

Navete: Lançadeira, na qual os fios ficam enrolados de uma à outra extremidade, e vão sendo lançados através das calas, formando, assim, a trama do tecido, entre os fios da urdidura. Naveta.

Pente: Peça básica do tear pente-liço, que levanta e abaixa alternadamente os fios da urdidura, provocando a abertura da cala, a qual permite a passagem dos fios da trama.

Pente-liço: Tear simples constituído de pentes liços.

Pescador: Instrumento manual cuja extremidade contém um pequeno gancho ou anzol, que se presta para a pescagem de fios no tear.

Pica: No esquema do debuxo, em papel quadriculado, corresponde a um quadrado pintado. Significa que a teia (urdidura) passa por cima da trama.

Roca: Aparelho de madeira, dotado de uma roda, movida a pedal ou manivela, com bojo na extremidade, no qual se enrola a rama do algodão ou da lã, no processo da fiação. Instrumento de fiação.

Sarilho: Aste, com dois braços em posição desencontrada, que se serve para enrolar o fio, proveniente do fuso ou da roca, em meadas.

Sarja: Um dos padrões de tecelagem. Tecido entrançado, de seda, lã ou algodão.

Tafetá: Um dos padrões de tecelagem. Tecido lustroso e armado, de seda, de trama finíssima.

Tear: Aparelho simples, em que se realiza o cruzamento ordenado de dois conjuntos de fios, denominados trama e urdidura, dando como resultado uma malha chamada tecido.

Tear-pêutico: Neologismo formado pelas palavras tear e terapêutico, para significar a terapia através do tear.

Teia: O mesmo que urdidura.

Museu José Antônio Pereira

Trama: Conjunto de fios, passados no sentido transversal do tear, com auxílio de uma agulha, o navete, ou a lançadeira. A trama é passada entre os fios da urdidura (ou teia) por uma abertura denominada cala.

Urdidura: Conjunto de fios tensos, paralelos e colocados previamente, no sentido do comprimento do tear. Teia.