CANA-DE-AÇÚCAR, ARADO E ENGENHO Euripedes Barsanulfo Pereira Os alqueires situados entre os fundos do casarão da Fazenda Bálsamo e o córrego Lajeado eram constituídos de solos intensamente férteis, ótimos para diversos tipos de lavoura. Ali, Antônio Luiz Pereira alternava plantações de milho, feijão, mandioca e cana-de-açúcar, deixando determinadas áreas em pousio, para lavras futuras. O cafezal, o laranjal e o bananal, ficavam à pequena distância da casa. As culturas de morangas, abóboras e melancias, tinham também locais determinados. Próximo aos fundos, à direita da morada dos Pereiras, estendia-se o pomar com variados tipos de árvores frutíferas. O cultivo do arroz era feito em terreno brejoso, às margens do ribeirão Bálsamo, não muito afastado da sede; separado desta, apenas por uma croa de serrado. Em área descampada e pouco distante, cresciam os algodoeiros. O amanho da terra, iniciado pela roçadura e destoca, completava-se com a aração, através de aparelho de tração animal. Uma junta de bois, atrelada pelo ajoujo, sustentando a cangalha, e conectada ao cambão, puxava com energia o cabeçalho da charrua. Enquanto isso, o lavrador, empunhando firmemente os seus cabos, embicava a relha da aiveca contra o solo. À frente, o facão do arado rompia as raízes incrustadas. Ao mesmo tempo em que a lavra ia abrindo leivas retilíneas e profundas, a terra era revolvida lateralmente. Formavam-se, então, leiras fecundas para diversas semeaduras, e também, para o plantio de mudas de cana-de-açúcar crioula (Saccharum officinarum). No tempo aprazado, a safra de canas sazonadas era colhida aos golpes das foices e facões. O seu transporte não prescindia da força das juntas de bois, que, "às carradas", transferiam-nas do canavial para o engenho, entre os fueiros do carro mineiro. Os trabalhos de beneficiamento requeriam mãos e braços vigorosos dos agregados e da família, em alegres mutirões. Perto do trapiche, as canas eram limpadas, esfoladas pelos machetes, antes de serem trituradas. Iniciava-se um novo ritual: outra junta de bois, em marcha lenta e contínua, marcando, com suas patas, uma circunferência de pegadas no chão; tracionando, através da camba, o canzil de um dos braços da almanjarra. Esta, ao receber a força motriz dos animais, repassava-a para o tandem de rolos da moenda fazendo girar o eixo do cilindro mestre, cujas engrenagens transmitiam a cinética, simultaneamente, para os dentes dos rolos caneiro e bagaceiro. Dois homens trabalhavam, um de cada lado do engenho. Os caules eram introduzidos e moídos entre os cilindros mestre e caneiro, e seus bagaços retornavam entre o mestre e o bagaceiro, para maior extração de garapa. O trapiche da fazenda situava-se à direita e ligeiramente à frentre da casa, no mesmo local onde se encontra atualmente uma réplica. Sua base, também chamada de assoalho do chassis, era estruturada por quatro baldrames de madeira, entrecruzados, formando um quadrilátero sobre o chão e fixados através de mourões profundamente fincados no solo. A armação, toda de madeira, completava-se com quatro pilares chamados virgens, que sustentavam barras horizontais em três níveis. Quando essas barras ficavam situadas sobre os cilindros denominavam-se corredores, e sustinham as extremidades superiores dos eixos. Quando imediatamente abaixo, mesa da moenda; cuja face superior possuía chumaceiras ou mancais, que permitiam o encaixe e a sustentação dos eixos dos três rolos. Pouco acima da mesa, em ambos os lados e também sustentadas pelos pilares, haviam as bancadas da moenda, que serviam para apoiar as canas no momento de introduzi-las entre os rolos de moagem.
A mesa apresentava, também, chanfraduras em forma de canaletas, as calhas, paralelas ao conjunto de cilindros, que, ligeiramente inclinadas, permitiam o escoamento da garapa para uma bica lateral. Em sua extremidade, um recipiente de madeira, o catumbá, provido de um coador, recebia o suco; depois transferido pela guinda para recipiente maior, também de madeira, denominado parol. Quando destinado à fabricação do açúcar, o caldo de cana, objetivando a precipitação de colóides, era misturado com a lixívia. Este produto da alquimia rural resultava da mesclagem de cinzas de certas árvores com a erva denominada rabo-de-raposa, e cal viva. Além de constituir delicioso caldo para o consumo imediato daquela gente, a garapa se transformava em melado, diversos tipos de rapadura e açúcar; menos em alcool e aguardente, porque a Fazenda Bálsamo não possuía alambique. Em local próximo ao engenho havia um galpão, onde fora construída uma grande e alongada fornalha, cujas trempes acomodavam um trem de três tachos de cobre. Nesses recipientes o caldo submetia-se à fervura até ao ponto de melado ou de açúcar. Posteriormente, ao ser levado para o tacho de resfriamento, sofria a operação de "bater o melado", até resultar em massa espessa. Nesses afazeres utilizavam-se corriqueiramente instrumentos peculiares, tais como os colherões de cedro, destinados a agitar o caldo durante a fervura e bater o melado; e as escumadeiras, colheres crivadas de orifícios para a retirada das espumas e impurezas. As rapaduras comuns eram obtidas pelo batimento e resfriamento do melado, cuja massa pura ia ocupar as fôrmas, delimitadas pelas tabuletas, que se encaixavam sobre a mesa. Quando se produziam as de massa, o amendoim torrado (para o pé-de-moleque), o mamão verde e outras polpas raladas eram misturados ao caldo fervente, esperando-se chegar ao ponto de melado. As fases subseqüentes semelhavam-se às da fabricação da rapadura comum. A produção do açúcar de cana demandava uma série de medidas, num processo complexo, demorado e inteiramente artesanal, cujos cuidados ficavam sempre a cargo da experiência do patriarca Antônio Luiz. A ciência da fabricação lhe era familiar, desde os tempos de Monte Alegre de Minas. Passava por três etapas consecutivas: a obtenção da garapa no engenho, a fervura nos tachos das fornalhas até atingir "o ponto", e a purgação do açúcar, nas fôrmas. Na Fazenda Bálsamo fervura e purga davam-se em galpão único. O melado no ponto de açúcar, depois de batido e destinado à cristalização, era depositado em fôrmas de madeira, de aproximadamente três metros de comprimento, que se apoiavam sobre um pequeno tendal. As fôrmas cônicas de barro, que davam origem aos chamados pães-de-açúcar, não eram utilizadas, portanto. As fabricadas pelo velho mineiro José Antônio, e seu filho Antônio Luiz, constavam de duas tábuas longas, com cerca de trinta centímetros de largura, justapostas em cunha. As extremidades, ocluídas por peças triangulares de madeira, davam ao instrumento a feição de um longo cocho cuneiforme. O fundo desse recipiente apresentava uma estreita fenda de poucos milímetros, por onde extravasava o mel do açúcar, resultante da purgação. Sobre a massa de melado, e separadas desta por folhas de bananeira, eram depositadas várias camadas de barro úmido, com a função de exercer peso e filtrar umidade, medida importante no processo de purga. Nos três primeiros dias, a estreita abertura inferior permanecia ocluída por meio de um sarrafo. Com a retirada deste, o açúcar começava a purgar seu mel pela fenda, escorrendo sobre pequena calha, uma bica estreita que o conduzia até outro catumbá. Vinte a trinta dias se passavam até que a purga cessasse. Os "pães-de-açúcar" estavam prontos. A partir daquele momento, os torrões podiam ser desenformados e quebrados em pequenos pedaços, coados em peneiras e deixados secar. Na seqüência, vinha o processo do refino do açúcar. Agora, misturado à água e coado energicamente em panos de algodão, retornava ao tacho para ser apurado às colheres de pau, no calor da fornalha. Produzia-se, desse modo, um açúcar moreno, o mascavo, para edulcorar os alimentos, e a vida da numerosa família de Antônio Luiz Pereira. GLOSSÁRIO: Aiveca: Peça que sustenta a relha do arado e, através de sua asa, serve para alargar o sulco. Ajoujo: Cordão ou tira de couro à qual se prendem ou jungem os bois pelos chifres ou pescoços. Almanjarra: Vara ou travessa que, conectada ao eixo do cilindro mestre do engenho, gira ao ser tracionada pelos animais, fazendo movimentar os cilindros da moenda. Almajarra. Amanho: Lavra, cultivo, preparação. Assoalho do chassis: Parte inferior do engenho que sustenta toda a sua armação. Baldrame: Cada uma das peças de madeira que servem de base de sustentação do engenho. Bancada: Prancha de madeira que, situada ligeiramente acima da mesa do engenho, serve para apoiar as canas no momento de sua introdução na moenda. Bater o melado: Processo de mexer vigorosamente o melado no tacho, com colheres de pau e ao calor do fogo, para atingir o "ponto de massa". Cabeçalho: Trave, viga de madeira que sustenta o conjunto aiveca/relha e facão do arado, cuja extremidade anterior se fixa aos braços e a da frente, ao balancim. Camba, timão, tirante do arado. Cabos da charrua: Cabos do arado. Calha: Cano, aberto na parte superior, cujo sulco, ou rego, serve para escoar a garapa. Camba: Peça curva onde se prende o dente (relha) do arado. Cabeçalho do arado. Cambão: Peça de madeira que se junta ao cabeçalho (ou camba) do arado para conectá-lo à canga (cangalha) da junta de bois. Cangalha: O mesmo que canga. Canzil: (da almanjarra) Peça de madeira que atravessa verticalmente a extremidade da almanjarra para conectá-la ao cambão da junta de bois. Carrada: Grande quantidade. Carga que um carro de bois pode transportar de uma só vez. Catumbá: Espécie de recipiente de madeira que serve para receber a garapa que vem do engenho através da calha. Charrua: Arado. Chassis: Armação de madeira do engenho. Chumaceiras: Espécie de coxim de madeira sobre o qual se move o eixo do cilindro do engenho para evitar desgaste. Bucha. Cilindro bagaceiro: Rolo que mói o bagaço da cana, engrenado ao cilindro mestre. Cilindro caneiro: Rolo que, engrenado ao cilindro mestre, mói a cana. Cilindro mestre: Cilindro principal e central, que recebe através de seu eixo o movimento da almanjarra e o transmite aos cilindros laterais (caneiro e bagaceiro) através de engrenagens. Colherão: Colher grande, de pau, para agitar o caldo de cana durante a fervura. Corredores: Barras horizontais fixadas à extremidade superior das virgens e que sustentam as pontas superiores dos eixos dos cilindros da moenda. Destoca: Limpar de tocos (ou cepos de árvores) os terrenos para fins de lavoura. Escumadeira: Colher crivada de orifícios, para tirar a escuma da garapa. Espumadeira. Facão: (do arado) Lâmina cortante que se projeta para baixo, fixada na parte inferior da camba do arado, à frente do conjunto aiveca/relha, e que tem por finalidade ir seccionando as raízes incrustadas no solo. Sega, segão do arado. Foice: Instrumento curvo para ceifar. Fueiro: Estaca roliça e alongada destinada a amparar a carga do carro de boi. É fixada na mesa do carro (nas chedas). Várias delas, formam fileiras laterais. Garapa: Suco de cana. Guinda: Instrumento destinado a levar o caldo de cana do catumbá até aos tachos, nas fornalhas. Leiva: Sulco do arado no solo. Leira: Elevação de terra entre dois sulcos. Canteiro. Lixívia: Mistura obtida com água, cal e cinzas de certas ervas em maceração, utilizada nos séculos XVIII e XIX, para alcalinizar a garapa que se destinava à fabricação de açúcar. Machete: Faca de mato. Facão. Mancal: Dispositivo localizado sobre a mesa do engenho, no qual se apóia o eixo do cilindro da moenda, permitindo um mínimo atrito. Mesa: Peça de madeira que, fixada aos pilares (virgens) do chassis do engenho, sustenta os cilindros da moenda. Mel-de-cana: Líquido que emana do açúcar durante o processo de purgação e escorre através da fenda das formas. Mourão: Esteio grosso fincado firme no solo. Pão-de-açúcar: Torrão cônico de açúcar que se retira das fôrmas. Parol: Recipiente onde se ajunta a garapa nos engenhos de cana-de-açúcar. Pé-de-moleque: Rapadura feita com amendoim torrado. Ponto de açúcar: Consistência a que chega o melado que se destina à fabricação de açúcar. Ponto de melado: Consistência a que chega o caldo de cana submetido à fervura, que se destina à produção de melado. Pousio: Interrupção do cultivo da terra por um a dois anos, para torná-la mais fértil. Purga: Ação de purgar. Purgação: Processo de separação do açúcar cristalizado do melaço no qual está contido. Purgar: Purificar, limpar o açúcar bruto. Relha: A parte do arado ou charrua que penetra no solo. Roçadura: Ato ou efeito de roçar. Derrubada ou corte de mato constituído de arbustos ou árvores tenras. Tabuleta: Pequenas peças de madeira que, ao se encaixarem sobre a mesa, resultam nas fôrmas de rapadura. Tacho: Vasilhame de metal, geralmente de cobre, largo e de pouca fundura, destinado à fervura da garapa, para obtenção de melado, rapadura e açúcar. Tandem: Nome que se dá ao conjunto alinhado, um atrás do outro, dos cilindros da moenda. Tendal: Armação sobre a qual se apoiam as fôrmas de açúcar. Trapiche: Engenho de cana-de-açúcar. Trem: Conjunto de tachos dispostos sobre as trempes da fornalha. Virgem: Pilar de madeira, da estrutura (chassis) do engenho de cana-de-açúcar, que em número de quatro sustentam a mesa, as bancadas e as travessas da cúpula (corredores) do trapiche. BIBLIOGRAFIA: 1. FRAGINALS, MANUEL MORENO: O Engenho. Volumes I, II e III. Coleção Estudos Históricos. Editora UNESP/HUCITEC, São Paulo, 1988. 2. LEME JÚNIOR, JORGE & BORGES, JOSÉ MARCONDES: Açúcar de Cana. Imprensa Universitária da Universidade Rural do Estado de Minas Gerais. Viçosa, 1965. 3. TEIXEIRA JR., LUIZ ALEXANDRE: O Engenho Colonial. O Cotidiano da História. Editora Ática. 4. Depoimentos de Zenaide de Souza Borges e Maria Souza Marawieski (Netas de Antônio Luiz Pereira, Bisnetas de José Antônio Pereira). |