CARRO MINEIRO

Galpão do carro mineiro


ONZE CARROS MINEIROS

Euripedes Barsanulfo Pereira

Segue a comitiva de José Antônio Pereira em marcha morosa e compassada. Onze carros mineiros, de até dez juntas de bois, vencendo três a quatro léguas por dia, a dois quilômetros por hora, em busca de paragens longínquas.

Rodas maciças, com as cambotas perfuradas pelos óculos, firmemente grudadas ao meão, vão marcando o leito dos caminhos, com o sinal dos cravos de suas relhas. Uns, roncando; outros, gemendo ou chiando, poucos tirando o baixão, o ruído mais puro, o mais belo de todos os cantos, do atrito dos eixos de bálsamo nos chumaços, dos cocão.

De tempos em tempos, o carreiro vai pincelando a mistura de óleo de mamona com carvão socado, para que os eixos não se queimem, e possam girar macios, produzindo, também, os sons mais bonitos.

Como uma orquestra de cordas entoando tristes canções, vão se perdendo pelas trilhas dos cerrados mineiros, nos sertões da Farinha Podre, procurando os campos grandes da Vacaria, no sul do Mato Grosso distante.

As mulheres mais jovens seguem a comitiva, ao silhão, segurando delicadamente o arção de suas selas e as rédeas de seus cavalos, em marcha picada, acompanhando os homens, em seus animais de passos macios, encilhados por arreios não menos confortáveis.

Acomodadas às mesas, em carros assoalhados por tábuas justapostas às chedas, protegidas pelos couros das toldas e pelas esteiras entrelaçadas aos fueiros, viajam as mulheres mais velhas, resistindo aos solavancos intermitentes. As crianças, sentadas nas beiras dos requebéns, balançando suas pernas, acompanham, felizes e despreocupadas, as paisagens coloridas, que se suscedem, intermináveis.

Jornadeiam, dia após dia, puxados por bois incansáveis. Pobres bois, bem nutridos, mansos, que dividem a sina do esforço contínuo, e sem paga, com os pescoços contidos pelas brochas, entre os canzis. Sustentando suas cangas, caminham em juntas de coice, do meio, ou da guia, atrelados pelos ajoujos, entre as argolas dos chifres. Na ponta, os pouco-treinados avançam conduzidos pelas sogas; e os mais obedientes, em fieira, vão atendendo ao chocalho das varas, e aos estímulos dos ferrões.

Pobres bois, valentes bois. Barroso, Diamante, Faceiro, Malhado, Talento, Rochedo, Viajante, Negrão. Nomes pomposos, de heróis anônimos. Bois comuns, sem raça, virilidade negada, cujos destinos, salvos dos saladeiros, são os pesos das cangalhas, atadas pelos tamoeiros às chavelhas. São o tracionar contínuo de carros cantadores e pesados, através das tiradeiras, enlaçadas aos pigarros dos cabeçalhos, e cambões.

Bois corajosos que, deixando a pegada de seus cascos ao longo dos trilhos de estradas sem fim, vão enfrentando o sol escaldante, as chuvas torrenciais, o frio; desafiando a ingrimidez dos montes; atravessando, à vau, sem medo, a correnteza dos ribeirões, e as larguras imensas dos rios.

À frente, varões sobre os ombros, caminham os candeeiros. Ao lado, experientes carreiros conduzem as fieiras de bois. O gado, a tropa de montaria e de carga, vão sendo tangidos, a cavalo. Na descida das serras, apenas as juntas de cabeçalho ficam na dianteira. As demais, transferidas para a retaguarda, como bois de corda, seguem jungidas ao argolão do carro, freando-o morro abaixo.

Nos interlúdios, às horas do almoço, os eixos cantantes silenciam seus lamentos, dando lugar a outros movimentos, a agitação em torno das panelas de ferro, ao fogo das trempes. O arroz carreteiro e o feijão tropeiro, requintes da culinária sertaneja, vão sendo servidos, em generosas colheres de pau, e prazerosamente devorados.

Após esses intermédios, seguidos invariavelmente por breves sesteadas, aquela gente destemida continua a jornada fatigante, confraternizando-se pelos caminhos do sertão. Repartindo as tristezas e as alegrias. Compartilhando as saudades, mas também a esperança de chegar, enfim, ao eldorado das terras do Campo Grande.

Longa viagem intercalada por paradas de refazimento, quando as gentes e os animais recobram suas energias, e até os carros de bois descansam, com seus cabeçalhos sobre as esperas, dormindo às margens das estradas.

A cada raiar de sol, retoma-se a marcha; e os carros mineiros, sustentando suas cargas, desdobram-se a cantar, emitindo sons que ecoam pelos prados, pelas matas, pelas serras, ao longo dos caminhos, em sinfonia melancólica, lenta e ritmada.

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Ao evocarmos esse passado, as cenas de uma realidade, que se deu há tanto tempo, vão tecendo em nossa mente um vívido holograma de imagens e de sons. Até os odores perfumados das relvas parecem materializar-se em maravilhosa alucinação, em devaneio magnífico.


GLOSSÁRIO:

Ajoujo: Corda de couro amarrada às argolas de ferro da extremidade dos chifres, que jungem dois bois carreiros.

Arção: Parte arqueada e saliente da sela de montar.

Argolão: Grande argola de ferro presa à extremidade posterior do cabeçalho do carro de bois, junto ao requebém. Dentre suas várias funções, serve para amarrar os "bois de corda" na descida das serras, e assim frear o carro; ou para transportar, em arrasto, troncos de árvores pesados.

Arroz carreteiro: Arroz, feito com pequenos pedaços de carne "de sol".

Baixão: Som especial, grave e quase puro, tirado pelo atrito do eixo dos carros de bois nos chumaços dos cocão.

Bálsamo: Árvore das florestas brasileiras cujos troncos fornecem madeira da melhor qualidade para a construção de carros de bois, especialmente seus eixos e cabeçalhos.

Bois de corda: Juntas de bois que são deslocadas para a parte trazeira do carro, cujos cambões são ligados por uma corda ao "argolão", objetivando frear o carro de bois ao longo das descidas das serras.

Brocha: Tira de couro, colocada de um canzil ao outro, abaixo do pescoço do boi, para contê-lo.

Cabeçalho: Peça de madeira, longa e espêssa, que se projeta do centro do corpo do carro, para frente, em cuja extremidade se liga a canga da junta de bois de coice. Timão.

Cambão: Peça de madeira, longa e espêssa, que liga a canga da junta de meio à extremidade da frente do cabeçalho.

Cambota: Parte semicircular da roda do carro de bois. Duas cambotas, uma de cada lado do meão, formam um círculo completo. Camba.

Campos grandes da Vacaria: Campos imensos, que se iniciavam nas imediações do município de Rio Brilhante e se estendiam até à cidade de Campo Grande.

Candeeiro: O carreiro, que se coloca à frente dos bois da guia do carro, conduzindo-o.

Canga: Peça de madeira colocada sobre os pescoços dos bois, e que ligadas ao cabeçalho, ou ao cambão, permitem a tração do carro. Cangalha.

Cangalha: O mesmo que canga.

Canzil: Peça de madeira, com cerca de 80cm de comprimento, afixada à canga através de um orifício, e que se projeta para baixo, uma de cada lado, para conter o pescoço do boi.

Carreiro: O condutor do carro de bois.

Chavelha: Peça de madeira, em forma de cunha, cujas extremidades se projetam poucos centímetros para acima e para baixo do cabeçalho ou do cambão, através de um orifício. Serve para a fixação da canga através de uma corda de couro chamada tamoeiro.

Cheda: Peça lateral da mesa do carro de boi, onde existe uma série de orifícios para a fixação dos fueiros.

Chumaço: Pequena peça de madeira colocada entre os cocão, cada uma, abaixo das chedas, para separá-la do eixo do carro.

Cocão: Peça de madeira, que atravessa a cheda verticalmente para baixo, fixando o eixo do carro, duas a cada lado.

Cravo: Prego de ferro, que fixa a chapa na borda da roda do carro.

Encilhar: Arrear os cavalos, colocar os arreios nas montarias.

Espera: Peça de madeira, removível, que apoia o cabeçalho do carro, como calço, quando estacionado sem as juntas de bois. É, geralmente, afixada ao pigarro através de uma pequena tira de couro.

Esteira: Tecido de junco ou taquara, que, entrelaçado aos fueiros, um de cada lado, forma a proteção lateral do carro de boi.

Feijão tropeiro: Comida preparada pelos tropeiros, nos sertões das minas gerais, cuja receita leva feijão mulatinho ou jalo, farinha de mandioca, lingüíça, ovos cozidos e torresmo.

Ferrão: Vara comprida, em cuja extremidade encaixa-se uma pequena lança de ferro. Serve para cutucar o trazeiro dos bois e estimulá-los a andar.

Fieira: A seqüência (fila) de bois de cada lado das juntas. O carreiro caipira, costuma dizer: fieira da direita e fieira da esquerda. Fileira.

Fueiro: Estaca destinada a amparar a carga dos carros de bois. São peças cilíndricas e alongadas, de "bálsamo", fixadas em orifícios nas chedas, em duas fileiras laterais.

Junta de coice: Ou junta de cabeçalho. Par de bois de tração, colocados junto ao carro, um de cada lado do cabeçalho.

Junta da guia: Par de bois de tração, colocados à frente de todas as juntas. Geralmente formada por bois dóceis, bem treinados, e que obedecem prontamente as ordens do carreiro.

Junta do meio: Par, ou pares de bois, de tração, colocados entre os da frente (junta da guia), e os de trás (junta de coice, ou de cabeçalho).

Légua: Distância de 6km.

Marcha picada: Trote macio, ritmado, sem solavancos, de cavalos treinados para montaria, especialmente usados em viajens de longas distâncias, criados no sul de Minas Gerais, desde o século XIX, que resultaram nos famosos "mangalargas marchadores".

Meão: Parte central da roda do carro, na qual se fixam, a cada lado, as cambotas.

Mesa: O corpo principal do carro, situado sobre as rodas, e que transporta as cargas. A extremidade da frente, tem a forma de cunha. A de trás, é retangular, e contém o recabém. Suas beiradas laterais são formadas pelas chedas.

Óculos da cambota: Orifícios, com cerca de 20cm de diâmetro, situados no centro das cambotas.

Pigarro: Pequena peça de madeira, que atravessa o cabeçalho verticalmente, através de um orifício, cujas extremidades projetam-se poucos centímetros para cima e para baixo. Serve para estabelecer a conexão do cambão ao cabeçalho através da tiradeira.

Relha: Cinta de ferro, estreita, que circunda a borda da roda do carro, sendo fixada a ela por pregos denominados cravos. Chapa, aro.

Requebém: Tábua espessa e retangular, que une as extremidades de trás das chedas, constituindo a beirada traseira da mesa do carro. Recavém.

Saladeiro: Matadouro. Local onde se prepara o charque, nos abatedouros de bois.

Sertões da Farinha Podre: Região do Triângulo Mineiro, que englobava a antiga Vila da Prata (atual Prata, Minas Gerais).

Sesteada: Ato de sestear (dormir depois do almoço). Lugar no campo, onde viajantes, tropeiros ou carreteiros almoçam e tiram a sesta.

Silhão: Sela grande, com estribo apenas em um dos lados, e arção semicircular, apropriada para senhoras cavalgarem de saia. (novo Aurélio - Ed. Nova Fronteira, 1999)

Soga: Corda, disposta em forma de "T", geralmente de couro, que une os chifres dos bois "de guia" e serve para conduzi-los, quando pouco treinados.

Tamoeiro: Corda, formada por tiras de couro trançadas, bastante resistente, e que serve para fazer a conexão, através de várias alças, da canga ao cambão, ou ao cabeçalho.

Tiradeira: Corda, formada por tiras de couro, trançadas, bastante resistente, e que serve para fazer a conexão dos cambões entre si, ou do cambão com o cabeçalho. Fixa-se no cabeçalho ao nível do pigarro.

Trempe: Arco de ferro com três pés sobre o qual se põem panelas que vão ao fogo.

Trilho: A marca linear no solo, uma de cada lado da estrada, feita pela passagem das rodas dos carros. É, também, a parte do leito da estrada, por onde caminham as fieiras (fileiras) das juntas de bois.

Vara: Pau roliço e longo, que o carreiro utiliza para conduzir os bois. Pode conter um chocalho de argolas de metal, cujo ruído serve para estimular a caminhada dos bois, através de reflexo condicionado. Varão.

Varão: Pau roliço e longo, que o carreiro utiliza para conduzir os bois. Na extremidade está encaixado o ferrão. Pode conter, também, um chocalho de argolas de metal, cujo ruído serve para estimular a caminhada dos bois, através de reflexo condicionado. Vara.

Vau: Trecho raso do rio ou do mar, onde se pode transitar a pé ou a cavalo.


BIBLIOGRAFIA:

DEPOIMENTOS DOS CARREIROS: Genervino Garcia Ferreira, Ercílio Rodrigues, Nilton da Silva, Alfredo Theotônio Pereira e Orlando Mongelli.